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Vade Mecum Espírita

REFUTAÇÃO DE UM ARTIGO DE L´UNIVERS


           O jornal O Universo, em seu número de 13 de abril último, contém o artigo do senhor abade Chesnel, onde a questão do Espiritismo está longamente discutida. Tê-lo-íamos deixado passar como tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância, se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que provam, pelo menos da parte de seus autores, a ignorância mais absoluta daquilo que atacam. Apraz-nos reconhecer que o artigo do senhor abade Chesnel está redigido com espírito diferente. Pela moderação e a conveniência de sua linguagem, merece uma resposta, tanto mais necessária porque esse artigo contém um erro grave e pode dar uma idéia muito falsa seja do Espiritismo em geral, seja em particular do caráter e do objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.          

          Citamos o artigo na íntegra.

          "Todo o mundo conhece o espiritualismo do senhor Cousin, essa filosofia destinada a tomar delicadamente o lugar da religião. Hoje, possuímos sob o mesmo título um corpo de doutrina reveladas, que vai se completando pouco a pouco, é um culto muito simples, é verdade, mas de uma eficácia maravilhosa, uma vez que coloca os devotos em comunicação real, sensível e quase sempre permanente com o mundo sobrenatural. 

            "Esse culto tem assembléias periódicas que se abrem pela invocação de um santo canonizado. Depois de constatar a presença, no meio dos fiéis, de São Luís, rei da França, se lhe suplica interditar, aos maus Espíritos, a entrada do templo, e lê-se a ata da sessão precedente. Depois, com o convite do presidente, um médium sobe à escrivaninha junto ao secretário encarregado de escrever as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas que serão ditadas ao médium, pelo espírito invocado. A assembléia assiste gravemente, piedosamente, a essa cena de necromancia algumas vezes muito longa, e quando a ordem do dia está esgotada, retira-se mais persuadido que nunca da verdade do espiritualismo. Cada fiel, no intervalo que decorre até a reunião seguinte, não negligencia manter um comércio assíduo, mas privado, com aqueles espíritos que lhe são ou os mais acessíveis ou mais caros. Os médiuns são muitos, e não há quase nada de segredo, na outra vida, que os médiuns acabem por penetrar. Esses segredos, uma vez revelados aos fiéis, não são ocultados ao público. A Revista espiritualista que aparece regularmente todos os meses, não recusa nenhuma assinatura profana, e qualquer um pode comprar os livros que contêm o texto revelado com seu comentário autêntico.

          "Chegar-se-ia a crer que uma religião, que consiste unicamente da evocação dos mortos, seja muito hostil à Igreja católica, que nunca cessou de interditar a prática da necromancia. Mas esses sentimentos estreitos, por natural que pareçam, não lhe são menos estranhos, assegure-se, ao coração dos espiritualistas. Rendem, de bom grado, justiça ao Evangelho e ao seu Autor, confessam que Jesus viveu, agiu, falou, sofreu como os nossos quatro evangelistas o narram. A doutrina evangélica é verdadeira; mas essa revelação, da qual Jesus foi o órgão, longe de excluir todo o progresso, tem necessidade de ser completada. O espiritualismo é que dará ao Evangelho a sã interpretação que lhe falta e o complemento que espera há dezoito séculos.

          "Mas, também, quem assinará limites ao progresso do cristianismo ensinado, interpretado, desenvolvido qual está, por almas libertas da matéria, estranhas às paixões terrestres, aos nossos preconceitos e aos nossos interesses humanos? O próprio infinito se nos descobre; ora, o infinito não tem limites, e tudo nos faz esperar que a revelação do infinito será continuada, sem interrupção; à medida que se escoarem os séculos, ver-se-ão as revelações acrescentadas, sem esgotar jamais esses mistérios, cuja extensão e profundidade parecem aumentar à medida que se libertam da obscuridade que os envolvera até aqui.

           "De onde esta conseqüência que o espiritualismo é uma religião, uma vez que nos coloca intimamente em relação com o infinito e que absorve, em se alargando, o cristianismo, que, de todas as formas religiosas presentes ou passadas, é, como se confessa sem dificuldade, a mais elevada, a mais pura e mais perfeita. Mas alargar o cristianismo é uma tarefa difícil, que não pode se cumprir sem derrubar as barreiras atrás das quais está entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira; menos ardentes, ou menos, avisados, os espiritualistas não encontram senão duas, cujo rebaixamento parece indispensável, a saber, a autoridade da Igreja católica, e o dogma da eternidade das penas.

          "Esta vida é única prova que será dada ao homem para atravessar? A árvore mora eternamente no canto em que tombou? O estado da alma depois da morte é definitivo, irrevogável e eterno? Não, responde tudo recomeça. A morte é, para cada um de nós, o ponto de partida de uma nova encarnação, de uma nova vida e de uma nova prova.

          "Deus, segundo o panteísmo alemão, não é o ser, mas o vir a ser eterno. O que quer que ele seja de Deus, o homem, segundo os espiritualistas parisienses, não tem outro destino que o futuro progressivo ou retrógrado, segundo seus méritos e segundo suas obras. A lei moral ou religiosa tem uma sanção verdadeira nas outras vidas, onde os bons são recompensados e os maus punidos, mas durante um período, mais ou menos longo, de anos ou de séculos, e não durante a eternidade.

          "O espiritualismo seria a forma mística do erro do qual o senhor Jean Reynaud é o teólogo? Talvez. É permitido ir mais longe e dizer que entre o senhor Reynaud e os novos sectários exista um laço mais estreito que aquele da comunidade de doutrinas? Talvez ainda. Mas essa questão por falta de informações certas, não seria decidida aqui de um modo decisivo.

          "O que importa muito mais que o parentesco ou as alianças heréticas do senhor Jean Reynaud, é a confusão de idéias da qual o progresso do espiritualismo é o sinal; é a ignorância em matéria de religião, que torna possível tanta extravagância; é a leviandade com a qual os homens, aliás estimáveis, acolhem essas revelações do outro mundo que não têm nenhum mérito, mesmo o da novidade.

          "Não é necessário remontar até Pitágoras e aos pais da Igreja para descobrir as origens do espiritualismo contemporâneo. Serão encontradas folheando-se as atas do magnetismo animal.

          "Desde o século XVIII, a necromancia desempenha um grande papel nas práticas do magnetismo; e vários anos antes que ocorresse a questão dos Espíritos batedores na América, certos magnetizadores franceses obtiveram, disseram eles, da boca dos mortos ou dos demônios, a confirmação de doutrinas condenadas pela Igreja; e notadamente a dos erros de Orígenes quanto à conversão futura dos maus anjos e dos condenados.

          "É preciso dizer também que o médium espiritualista, no exercício de suas funções, pouco difere do primeiro não ultrapassa aquela que limita a visão do segundo.

          "As informações que a curiosidade obtém nos assuntos privados, por meio da necromancia, não ensinam, em geral, nada mais do que era conhecido antes. A resposta do médium espiritualista é obscura nos pontos que nossas pesquisas pessoais puderam esclarecer; ela é limpa e precisa nas coisas que nos são bem conhecidas; muda sobretudo sobre o que se oculta aos nossos estudos e aos nossos esforços. Parece, em uma palavra, que o médium tem uma visão magnética de nossa alma, mas que não descobre nada além daquilo que se encontra escrito. Mas essa explicação, que parece bem simples, está, todavia, sujeita a graves dificuldades. Ela supõe, com efeito, que uma alma pode naturalmente ler no fundo de uma outra alma sem os recursos de sinais, independentemente da vontade daquele que se tomaria, para qualquer um, um livro aberto e muito legível. Ora, os anjos, bons ou maus, não possuem naturalmente esse privilégio, nem com relação a nós, nem nas relações diretas que têm entre eles. Só Deus peneira imediatamente os espíritos e escruta, até o fundo, os corações mais obstinadamente fechados à sua luz.

          "Se os fatos espiritualistas mais estranhos, que se narram, são autênticos, seria preciso, pois, para explicá-los, recorrer a outros princípios. Esquece-se muito que esses fatos se reportam, em geral, a um objeto que preocupa fortemente o coração ou a inteligência, que provocou longas pesquisas e dos quais, freqüentemente, fala-se fora da consulta espiritualista. Nessas condições, não se pode perder de vista que um certo conhecimento das coisas que nos interessam não ultrapassa nunca os limites naturais da força dos Espíritos.

          "Qualquer que ela seja, não há outra coisa, no espetáculo que nos é dado hoje, senão um evolução do magnetismo que se esforça por se tornar uma religião.

          "Sob a forma dogmática e polêmica que a nova religião deu ao senhor Jean Reynaud, ela encorajou a condenação do Concilio de Perigueux, cuja competência, lembre-se, foi gravemente negada pelo culpado.

          "Na forma mística que ela toma hoje em Paris, merece ser estudada ao menos como um sinal dos tempos em que vivemos. O espiritualismo já recrutou um certo número de homens, entre os quais vários são honrosamente conhecidos no mundo. Esse poder de sedução que ele exerce, o lento progresso, mas não interrompido, que lhe é atribuído por testemunhas dignas de fé, as pretensões que ele ostenta, os problemas que coloca, o mal que pode fazer às almas, eis, sem dúvida, bastante motivos reunidos para atrair, desse lado, a atenção dos católicos. Guardemo-nos de atribuir, à nova seita, mais importância do que realmente ela tem. Mas, para evitar o exagero que aumenta tudo, não caiamos na mania de negar e diminuir todas as coisas. Nolite omni spiritui credere, sed probate spiritus si ex Deo sint: Quoniam multi pseudoprophetoe exierunt in mundum. (I Joan. 4: 1)." 

L'ABBÉ FRANÇOIS CHESNEL    

          Sr Abade,

          O artigo que publicastes no L' Univers relativo ao Espiritismo, contém vários erros que importa retificar, e que provêm, sem dúvida, de um estudo incompleto da matéria. Para refutá-los todos, seria preciso retomar, desde o alicerce, todos os pontos da teoria, assim como os fatos que lhe servem de base, e é o que não tenho nenhuma intenção de fazer aqui. Limito-me aos pontos principais.

          Desejais reconhecer que as idéias espíritas aliciaram um certo numero de homens, entre os quais alguns são honrosamente conhecidos no mundo; esse fato, cuja realidade ultrapassa, sem dúvida, de muito o que credes, merece incontestavelmente a atenção de todo homem sério, porque tantas pessoas eminentes, pela sua inteligência, seu saber e sua posição social, não se apaixonariam por uma idéia despida de todo fundamento. A conclusão natural é que no fundo de tudo isso deve haver alguma coisa.

          Objetareis, sem dúvida, que certas doutrinas, metade religiosas, metade sociais, encontraram nestes últimos anos sectários nas próprias classes da aristocracia intelectual, o que não lhes impediu caírem no ridículo. Os homens de inteligência podem, pois, se deixarem seduzir-se por utopias.

          A isso respondo que as utopias não têm senão um tempo; cedo ou tarde; a razão lhe faz justiça; ocorrerá o mesmo com o Espiritismo, se for uma; se for uma verdade, ele triunfará de todas as posições, de todos os sarcasmos, direi mesmo de todas as perseguições, se as perseguições fossem ainda do nosso século, e os detratores o serão à suas expensas; seria bem preciso que, bom grado, malgrado, os opositores o aceitassem, como aceitaram tantas coisas, contra as quais haviam protestado, supostamente em nome da razão. O Espiritismo é uma verdade? O futuro julgará; já parece prenunciar pela rapidez com a qual essas idéias se propagam, e notai bem que não é na classe ignorante e iletrada que elas encontram adeptos, mas, bem ao contrário, entre as pessoas esclarecidas.

          Há ainda a se anotar que todas as doutrinas filosóficas são obras de homens com pensamentos maiores ou menores, mais ou menos justos; todas têm um chefe, ao redor do qual se agruparam outros homens partilhando a mesma maneira de ver.

          Qual é o autor do Espiritismo? Quem é aquele que imaginou essa teoria, verdadeira ou falsa? Procurou-se coordená-la, formulá-la, explicá-la, é verdade; mas a idéia primeira, quem a concebeu? Ninguém; ou, por melhor dizer, todo o mundo, porque cada um pôde ver, e aqueles que não viram, foi porque não quiseram ver, ou quiseram ver à com que vissem mal e julgassem mal. O Espiritismo decorre de observações que cada um pode fazer, que não são nenhum privilégio para ninguém, é o que explica sua irresistível propagação; não é o produto de nenhum sistema individual, e é isso que o distingue de todas as outras doutrinas filosóficas. Essas revelações do outro mundo não têm mesmo, dissestes, o mérito da novidade. Seria, pois, um mérito apenas a novidade? Quem jamais pretendeu que fosse uma descoberta moderna?

          Essas comunicações sendo uma conseqüência na natureza humana, e ocorrendo por uma vontade de Deus, fazem parte das leis imutáveis pelas quais rege o mundo; elas, pois, devem existir desde que há homens na Terra eis porque são encontradas na mais alta antigüidade, em todos os povos, na história profana, como também na história sacra. A antigüidade e a universalidade dessa crença são argumentos em seu favor; tirar dela uma conclusão desfavorável, seria falta de lógica antes de tudo.

          Dissestes, em seguida, que a faculdade dos médiuns difere magnetizador, dito de outro modo, do sonâmbulo; mas, admitamos mesmo uma perfeita identidade.

          Qual pode ser a causa dessa admirável clarividência sonambúlica, clarividência que não encontra obstáculo nem na matéria, nem na distância; que se exerce sem o concurso dos órgãos da visão? Não é a demonstração mais patente da existência e da individualidade da alma, pivô da religião?

          Se eu fora padre, e quisesse, num sermão, provar que há em nós outra coisa além do corpo, demonstrá-lo-ia, de modo irrecusável, pelos fenômenos do sonambulismo natural ou artificial. Se a mediunidade não é senão uma variedade do sonambulismo, seus efeitos não são menos dignos de observação. Nela encontraria uma prova a mais em favor de minha tese, e dela faria uma nova arma contra o ateísmo e o materialismo.

          Todas as nossas faculdades são obras de Deus; quanto maiores e maravilhosas, mais atestam seu poder e sua bondade.

          Para mim que, durante trinta e cinco anos, fiz do sonambulismo um estudo especial, que nele fiz um não menos aprofundado de todas as variedades de médiuns, digo, como todos aqueles que não julgam pela visão de uma única face, que o médium é dotado de uma faculdade particular, que não permite confundi-lo com o sonâmbulo, e que a completa independência de seu pensamento está provada por fatos da última evidência, para qualquer que se coloque nas condições requeridas para observar sem parcialidade. Abstração feita das comunicações escritas, qual é o sonâmbulo que jamais fez jorrar um pensamento de um corpo inerte? Que produziu aparições visíveis e mesmo tangíveis? Que pôde manter um corpo pesado no espaço sem ponto de apoio? Foi por um efeito sonambúlico que um médium desenhou, há quinze dias, em minha casa, na presença de vinte testemunhas, o retrato de uma jovem morta há dezoito meses, e que jamais conhecera, retrato reconhecido pelo pai presente à sessão? Foi por um efeito sonambúlico que uma mesa respondeu com precisão às perguntas propostas, e mesmo a perguntas mentais?

          Seguramente, admitindo-se que o médium esteja num estado magnético, parece-me difícil acreditar que a mesma seja sonâmbula.

          Dissestes que o médium não fala claramente senão de coisas conhecidas.

          Como explicar o fato seguinte, e cem outros do mesmo gênero, que se reproduziram muitas vezes e de meu conhecimento pessoal? Um de meus amigos, muito bom médium escrevente, perguntou a um Espírito se uma pessoa que ele perdeu de vistas há quinze anos está ainda neste mundo. "Sim" , ele vive ainda, respondeu-lhe; ele mora em Paris, em tal rua e tal número." Ele foi, e encontrou a pessoa no endereço indicado.

          Foi ilusão? Seu pensamento poderia sugerir-lhe essa resposta?

          Se, em certos casos, as respostas podem concordar com o pensamento, é racional concluir disso que seja uma regra geral?

          Nisso, como em todas as coisas, os julgamentos precipitados são sempre perigosos, porque podem ser desmentidos pelos fatos que se observam.

          De resto, senhor Abade, minha intenção não é fazer aqui um curso de Espiritismo, nem discutir-lhe o erro nem a verdade. Ser-me-ia preciso, como disse sempre, lembrar os inumeráveis fatos que citei na Revista Espírita, bem comomo as explicações dadas em meus diversos escritos.

          Chego, pois, à parte de vosso artigo que me parece a mais grave.      

          Intitulastes vosso artigo: "Uma religião nova em París". Supondo que êste fosse, realmente o caráter do Espiritismo, haveria aí um primeiro erro, tendo em vista que está longe de se circunscrever a Paris. Ele conta vários milhões de adeptos, espalhados nas cinco partes do mundo, e Paris não lhe foi o foco primitivo.

          Em segundo lugar, é uma religião?

          Tratarei de mostrar o contrário.

          O Espiritismo funda-se sobre a existência de um mundo invisível, formado por seres incorpóreos que povoam o espaço, e que não são outros senão as almas daqueles que viveram na Terra, ou em outros globos, onde deixaram seu envoltório material. São esses seres aos quais demos, ou melhor, que se deram o nome de rodeiam sem cessar, exercem sobre os homens, com o seu desconhecimento, uma grande influência; eles desempenham um papel muito ativo no mundo moral, e, até um certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo está, pois, na natureza, e pode-se dizer que, em uma certa ordem de idéias, é uma força, como a eletricidade é uma outra sob outro ponto de vista, como a gravidade universal é uma outra.

          Ele nos revelou o mundo dos invisíveis, como um microscópio nos revelou o mundo dos infinitamente pequenos, que não supúnhamos. Os fenômenos, dos quais esse mundo invisível é a fonte, deveram se produzir, e são produzidos, em todos os tempos, eis porque a história de todos os povos os menciona. Unicamente, em sua ignorância, os homens atribuíram esses fenômenos a causas mais ou menos hipotéticas, e deram, sob esse aspecto, um livre curso à sua imaginação, como fizeram com todos os fenômenos, cuja natureza lhes era imperfeitamente conhecida.

          O Espiritismo, melhor observado depois que foi vulgarizado, vem lançar a luz sobre uma multidão de questões até aqui insolúveis ou mal resolvidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma conta, entre seus adeptos, com homens de todas as crenças, e que por isso não renunciaram às suas convicções: os católicos fervorosos que não praticam menos todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e brâmanes; há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque estas idéias são incompatíveis com as observações espíritas.

Assim, pois, o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda a questão dogmática. É verdade que êle tem conseqüências morais como todas as ciências filosóficas; essas conseqüências estão no sentimento do Cristianismo, porque o Cristianismo, de todas as doutrinas, é a mais clara, a mais pura, e é por esta razão que, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos são os mais aptos a compreendê-lo em sua verdadeira essência.

          O Espiritismo não é, pois, uma religião: de outro modo teria seu culto, seus templos, seus ministros. Cada um, sem dúvida, pode se fazer uma religião de suas opiniões, interpretar ao seu gosto as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja, há distância, e creio que seria imprudente dar-lhe a idéia. Em resumo, o Espiritismo se ocupa com a observação dos fatos, e não com as particularidades de tal ou tal crença, da procura das causas, de explicações que esses fatos podem dar de fenômenos conhecidos, na ordem piorai como na ordem física, e não impõe mais um culto aos seus adeptos do que a astronomia impõe o culto dos astros, nem a pirotécnica o do fogo.

          Bem mais: do mesmo modo que o sabeísmo nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na antigüidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje que, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo mais sadiamente, nos põe em guarda contra os sistemas errôneos, frutos da ignorância; e a própria religião pode nele haurir a prova palpável de muitas verdades contestadas por certas opiniões; eis porque, contrariamente à maioria das ciências filosóficas, um dos seus efeitos é o de conduzir às idéias religiosas aqueles que se desviaram por um ceticismo exagerado. 

          A Sociedade, da qual falais, definiu seu objetivo por seu próprio título; o nome de: Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas caráter, que seu regimento lhe interdita ocupar-se de questões religiosas; ela está alinhada na categoria de sociedades científicas porque, com efeito, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das relações entre o mundo visível e o mundo invisível; ela tem seu presidente, seu secretário, seu tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões; ali não se faz nenhum discurso, nem nada que tenha o caráter de um culto qualquer. Ela procede aos seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição necessária para as observações; segundo, porque sabe o respeito que se deve àqueles que não vivem mais na Terra. Chama-os em nome de Deus, porque crê em Deus, em seu todo poder, e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão. Abre a sua sessão por uma chamada geral aos bons Espíritos, porque, sabendo que os há bons e maus, prende-se a que estes últimos não venham misturar-se fraudulentamente às comunicações que recebem e induzi-la em erro.

          O que isso prova?

          Que não somos ateus; mas isso não implica, de nenhum modo, que sejamos religiosos; é do que deveria convencer-se a pessoa que vos narrou o que se faz entre nós, se ela tivesse seguido nossos trabalhos, e se, sobretudo, os julgasse menos levianamente, e talvez com espírito menos prevenido e menos apaixonado.

          Os fatos protestam, pois, por si mesmos, contra a qualificação de nova seita que destes à Sociedade, certamente por não a conhecerdes melhor.

          Terminais vosso artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo pode fazer às almas. Se as conseqüências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma, de sua individualidade depois da morte, do livre arbítrio do homem, das penas e das recompensas futuras, seria uma doutrina profundamente imoral; longe disso, ele prova, não pelo raciocínio, mas pelos fatos, essas bases fundamentais da religião, da qual o mais perigoso inimigo é o materialismo. E faz mais: por suas conseqüências ensina a suportar, com resignação, as misérias desta vida; acalma o desespero; ensina os homens a se amarem como irmãos, segundo os divinos preceitos de Jesus. Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos endurecidos conduziu, quanto arrancou de vítimas ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada àqueles que abreviam sua vida, contrariamente à vontade de Deus; quantos ódios acalmou e aproximou inimigos! Está aí o que chamais fazer mal às almas? Não, não podeis pensar assim, e apraz-me crer que se o conhecesse melhor, julgá-lo-ia de outro modo.

          A religião, direis, pode fazer tudo isso. Longe de mim contestá-lo; mas crede que teria sido mais feliz para aqueles que ela encontrou rebeldes, seres que permaneceram numa incredulidade absoluta? Se o Espiritismo disso triunfou, se tornou claro o que era obscuro, evidente o que era duvidoso, onde está o mal? Para mim, digo que em lugar de perder as almas, ele as salvou.

 

Aceite, etc.

ALLAN KARDEC.

 

 

Autor: Allan Kardec
Fonte: Revista Espírita 1859
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