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Interpretação do Hipnotismo


          Todas as manifestações da hipnose se explicam pela separação, a ação isolada dos dois psiquismos e a exteriorização mais ou menos completa do ser subconsciente. É sabido que os fenômenos característicos podem ser verificados seja no organismo do paciente, seja fora dele.
          Os fenômenos orgânicos (anestesia verdadeira, hiperestesia real, catalepsia, letargia, etc.) são devidos, como acontece com os histéricos, precisamente à impotência diretora e perceptiva da subconsciência superior que, em parte, se acha exteriorizada do organismo.
          Os fenômenos verificados fora do organismo são devidos ao ser subconsciente exteriorizado.
          Os fenômenos sensitivos, em geral, são em parte pertinentes à exteriorização: a anestesia e a hiperestesia são acontecimentos secundários. Essencialmente, não há nem diminuição nem aumento, mas deslocamento da sensibilidade. Esta, que desapareceu da superfície do corpo e dos órgãos dos sentidos, encontra-se, às vezes, transferida para linhas e pólos de exteriorização, descritos pelo Sr. de Rochas.
          Desde logo, compreende-se como simultaneamente podem verificar-se dois fenômenos em aparência contraditórios: a insensibilidade orgânica e a percepção, fora da mediação dos órgãos sensoriais, de sensações táteis, olfativas, auditivas, gustativas e visuais.
          Por outro lato, compreende-se que essa sensibilidade possa exercer-se através de obstáculos materiais, que não têm ação apreciável sobre a força-inteligência exteriorizada.
          Finalmente, explica-se o estranho fato de que os sentidos diversos se exercem indiferentemente sobre qualquer ponto da irradiação periorgânica, comprovação de que todos os sentidos normais são condensados e sintetizados num sentido único sobre todo o organismo subconsciente.
          Os fenômenos supranormais (leitura de pensamento, lucidez, etc.) serão o resultado da entrada em serviço das faculdades e dos conhecimentos transcendentais do ser subconsciente liberado.
          É claro que, apenas acidentalmente, como em relâmpagos, de um modo relativo e fragmentário, faculdades e conhecimentos transcendentais poderão repercutir no psiquismo inferior. Mas, isso em conseqüência da descentralização produzida pela hipnose e por condições anormais de funcionamento dos dois psiquismos.
          O automatismo do psiquismo inferior é o produto do seu isolamento do ser subconsciente e da cessação da ação diretora desse último.
          Esse automatismo é de fato notável,[i] tanto na hipnose quanto nos estados conexos, permitindo que se faça uma idéia suficiente do papel das faculdades cerebrais.
          Permite, por exemplo, o reencontro, no paciente hipnotizado, de muitos conhecimentos habituais, ou aparentemente esquecidos do ser consciente. Isso pode explicar-se seja por um armazenamento desses conhecimentos na subconsciência inferior, armazenamento esse análogo ao que se opera na subconsciência superior, seja, principalmente, pela ação dessa última na conservação da personalidade.
          Com efeito, o permanente esforço do ser subconsciente é suficiente para esclarecer como esses conhecimentos permanecem gravados no cérebro, apesar da contínua renovação de suas moléculas constitutivas, prontas para serem utilizadas na vida normal ou automaticamente nos estados anormais.
          Às vezes, como se sabe, o hipnotismo ou o sonambulismo permitem a realização de atos automáticos mais perfeitos que os normais.[ii] Como o psiquismo inferior, nesses estados, se acha isolado de seu psiquismo superior, uma semelhante constatação poderia parecer contrária às idéias esposadas neste volume.
          Não é, na realidade, nada disso o que acontece: a perfeição dos atos automáticos explica-se facilmente pelo fato de que todas as forças vitais se concentram, por assim dizer, em vista da execução de uma ordem dada, ante a obediência à sugestão ou à auto-sugestão. E assim o fazem, sem reflexão, sem hesitação, sem distração.
          Daí o notável caráter do automatismo fisiológico ou psicológico, e mesmo a possibilidade de modificações orgânicas curativas ou desorganizadoras na hipnose e nos estados conexos.
          Passemos agora à sugestão. Poderá ela exercer-se:
   •       seja sobre a consciência orgânica obnubilada;
   •       seja sobre a subconsciência exteriorizada.
          1º) Sugestão sobre a consciência orgânica obnubilada –          Eis em que consiste: a vontade do magnetizador toma pura e simplesmente o lugar diretor da subconsciência exteriorizada. Desde então, dirige o organismo e a cerebração do paciente à sua vontade.
          Como, sem dúvida, o ser subconsciente, sobretudo sobre o psiquismo inferior, age pelo mecanismo da sugestão na vida normal, há na hipnose simplesmente mudança de influência sugestiva: a da subconsciência superior é exteriorizada e a do magnetizador é interiorizada.
          2º) Sugestão sobre a subconsciência exteriorizada [iii] – Essa sugestão explica-se pelo fato considerável – se bem que momentâneo – de a vontade subconsciente separar-se de seu instrumento cerebral.
          O ser subconsciente passa por uma obnubilação relativa que, facilmente, o fará submeter-se à potente influência do magnetizador. Quanto ao resto, essa obnubilação, além de ligada às fases elementares da exteriorização, é meramente passageira.
          Como acontece nos estados mediúnicos superiores, logo que a exteriorização é suficiente, o ser subconsciente manifesta uma vontade toda pessoal e uma característica assaz original. Em todos os casos, a questão de sugestão sobre a subconsciência superior necessita de novas pesquisas experimentais, com esse propósito sistematizadas; elas por si sós permitirão a própria distinção nítida da sugestão sobre a subconsciência inferior, além do conhecimento dos limites nos quais seja ela possível, caso o seja.
          Resta o estudo da sugestão em prazo predeterminado; seu mecanismo, no entanto, é mais complicado, razão pela qual me vejo obrigado a estudar, antes, a sugestibilidade em geral, para a qual é imperioso fornecer uma teoria conforme as novas noções.
          Da sugestibilidade – Não consiste ela apenas na possibilidade de se sofrer influências diversas, senão também na de adaptar-se à consciência pessoal tudo o que pode influenciá-la. Em outras palavras, a sugestibilidade é a faculdade de adaptação do ser psíquico ao meio e às influências ambientes, bem como de adaptação dessas influências ambientes ao ser psíquico.  É, portanto, a condição primeira do processo de assimilação psíquica, permitindo ao “eu” a aquisição de novos elementos conscienciais.
          Em relação ao moral, a sugestibilidade simplesmente representa o apetite e a capacidade de absorção.
          Assim compreendida, necessita ela estar restrita aos limites convenientes, sem o que atravancaria o “eu” com as mais diversas aquisições, sob cuja pressão caótica a personalidade arriscar-se-ia a desaparecer. É mister um freio à sugestibilidade. Esse freio é a vontade. E isso por duas razões: por temor do esforço demandado por toda aquisição nova e por um instinto que mantém o próprio instinto de conservação.
          A vontade luta pela conservação da personalidade psíquica, que comprometeria o afluxo de elementos estranhos muito numerosos ou diferentes de seus próprios elementos.   Instintivamente, ela é hostil às aquisições intelectuais que não estão acordes com os traços principais da característica pessoal.
          Numa pessoa qualquer, a vontade e a sugestibilidade atuam em razão inversa, como potência e como extensão.[iv]
          Estando essas noções gerais admitidas, estudemos a sugestibilidade em seus pormenores.
          É necessário considerá-la no estado de vigília normal, no sono normal e nos sonos anormais.
          Sugestibilidade no estado de vigília – Posto que a sugestibilidade tem por contrapeso a vontade, para que se mantenha em seus limites úteis será mister que o equilíbrio entre aquela e esta seja bom. Se for defeituoso, a sugestibilidade será ou muito forte, ou muito fraca.
          Intervém, no entanto, um outro fator importante: o da influência de uma vontade estranha à vontade consciente. Aquela pode ser ou a vontade interna do ser subconsciente, ou uma vontade exterior.
          Qualquer que seja a vontade diferente, subconsciente ou exterior, poderá influenciar a sugestibilidade do ser.
          Se os dois psiquismos estão de acordo, e, felizmente, é o caso mais freqüente, assegura-se o equilíbrio. O psiquismo superior preenche seu papel normal de direção psicológica e a vontade consciente não mais passa do reflexo da vontade subconsciente, salvo exceções variáveis em importância e em freqüência.
          Se, por outro lado, a concordância estiver mal assegurada, se o psiquismo superior preencher mal o seu papel de direção (relativo a uma das causas estudadas no capítulo das neuroses), o psiquismo inferior fácil e fortemente sofrerá a possível influência de uma vontade exterior que, mais ou menos, se substituirá à do ser subconsciente. É por isso que os neuropatas inferiores são por demais acessíveis à sugestão exterior, mesmo no estado de vigília normal.
          Finalmente, e sobretudo, as influências exteriores serão poderosas sobre as crianças. Com efeito, por dois motivos é considerável a sugestibilidade destas:
   •       pela insuficiência da vontade consciente (que apenas se esboçou);
   •       pela impotência da vontade subconsciente (que só pode agir plenamente sobre o ser após o remate do desenvolvimento orgânico).
          Daí, para a criança e para o adolescente, os imensos perigos de uma educação mal compreendida ou sistematicamente falseada, cuja “impressão” pode persistir e comprometer, para toda a vida, a influência favorável e regular da vontade subconsciente.
          Sugestibilidade durante o sono – Neste estado, a vontade consciente do ser acha-se bastante diminuída; há, portanto, aumento da sugestibilidade. Esta, quando acrescida, será acessível seja à influência da vontade subconsciente (donde os efeitos importantes do trabalho subconsciente durante o sono, se bem que necessariamente irregulares e aleatórios), seja à influência de uma vontade exterior. Mas, no sono natural, a vontade subconsciente geralmente preserva o ser das sugestões exteriores.
          No sono hipno-mediúnico, ao contrário, estando a subconsciência exteriorizada, não mais pode exercer esse controle; donde, precisamente, a importância das sugestões exteriores.
          Com essa teoria da sugestibilidade, pode-se compreender até mesmo a sugestão a prazo predeterminado. Esta só se pode explicar pela impotência ou pela aniquilação da vontade subconsciente. Com efeito, não é admissível que, no momento fixado, a vontade subconsciente deixe se cumpra o ato sugerido, sobretudo se se trata de um ato nocivo ao ser. Segundo a expressão de Myers,[v] “parece singular que a divindade interior possa ser conduzida com tanta facilidade, à menor palavra”.
          Tudo pode compreender-se. Não é a “divindade interior” que assim se deixa levar; é simplesmente o psiquismo inferior. A sugestão a prazo predeterminado, tal como a sugestão ordinária, só é toda-poderosa porque suplanta a do ser subconsciente.
          Do mesmo modo, o ato sugerido só pode ser levado a cabo pelo prévio retorno do ser ao estado de hipnose em que se encontrava quando a sugestão foi dada.
          Sem duvidar disso, o magnetizador sugere a hipnose ao mesmo tempo que o ato a ser praticado. No momento fixado, o sujeito acha-se tal qual estava quando recebeu a ordem: não há lugar para que atine com o intervalo de tempo escoado entre sugestão e o seu efeito.
          A não realização da hipnose prévia é, sem dúvida, a causa do freqüente insucesso da sugestão a prazo predeterminado.[vi]
 
[i]    Ver, sobretudo, os trabalhos de Janet sobre o Automatismo psicológico, Paris, F. Alcan.
[ii]    Entre os mais notáveis exemplos de perfeição dos atos automáticos, pode citar-se o caso de coreografia sonambúlica, como o de Line, estudado por de Rochas no seu belo livro: Os sentimentos, a música e o gesto; além do ocorrido com Madeleine G..., narrado pelo Prof. Flournoy nos Arquivos de psicologia, julho de 1904.
[iii]   Por exemplo, logo que o magnetizador sugere a projeção ao longe, da força-inteligência exteriorizada, com a finalidade da visão a distância.
[iv]   Isso não passa, bem entendido, de uma regra geral. Os seres superiores, que possuem uma vontade muito forte, mas que não têm a temer os desvios de sua sugestibilidade, sabem elevar-se sempre sobre o misoneísmo, restringindo o menos possível sua aptidão para as aquisições novas, ainda as mais distanciadas de suas idéias e hábitos de pensar. Instintivamente, sentem que se lhes poderão assimilar, sem que subvertam sua característica pessoal.
[v]    Myers, A consciência subliminal.
[vi]   Seria fácil demonstrá-lo experimentalmente: é suficiente, para tal, comparar os casos de sucesso por sugestão de hipnose prévia ao ato, ou por sugestão do ato por si só.
Autor: Gustav Geley
Fonte: O Ser Subconsciente
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